sábado, 5 de março de 2016

Sentido obrigatório

Está escuro demais. Está chovendo demais. Quero sair de onde estou, mas não acho os pedais. O acelerador não acelera. O freio não freia. Morreu, já não sei por quantas vezes consecutivas e não quero fazer funcionar de novo. Quantas vezes ainda serei obrigada a ressuscitar?

Não posso sair e ir para lugar algum. Não tenho como guiar isso. Sei que deveria estar em algum lugar, qualquer outro lugar que não aqui, mas não sei como chegar lá. Não sei o caminho, não sei para onde ir e pior: ainda não consigo ligar esse carro. Não quero ligar esse carro. É sempre rápido demais, com comandos demais. O motor está sempre mais forte que o meu coração e isso me desequilibra por dentro. Não sinto que estou no controle. Não posso estar no controle de algo maior e mais forte do que eu. Quero sair e andar com meus próprios pés, assim sim eu me sinto eu. Só com meus pés eu me sinto segura, confiante, dona de tudo o que me cerca. Sobre minhas pernas é possível sustentar o peso do meu corpo, minha história, minhas nuances. Esse banco frio não me conforta, esse metal insensível não se importa com o que sinto por dentro. Um carro não tem um interior para simpatizar com o meu, talvez por isso me sinta tão sozinha aqui dentro. Mas não posso sair, há chuva demais lá fora.

As buzinas atrás de mim ecoam enfurecidas. Há gente sem todo o tempo do mundo que precisa continuar sua vida em seus carros, acelerando, freando, engatando a marcha e exercendo controle sobre a máquina. Não sou uma dessas pessoas. Não posso exercer controle para além de mim.

Estou sozinha no carro, sem ninguém para rir comigo da minha inabilidade com o acelerador. Esses ficaram para trás. "Uns perdem para outros ganharem", mas eu não quero ganhar sozinha. Não quero um carro vazio. Por que não podemos todos ganhar e compartilhar nossa vitória?

Quero poder aprender fora das ruas e no meio do caminho poder rir. Quero ter a chance de errar sem precisar sempre recomeçar tudo de novo. Afinal, na era dos automóveis, criar pernas e ter companhia para caminhar é um desejo que a indústria não nos permite realizar.

 

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